Decreto Estadual Anticorrupção contém inconstitucionalidade
Como tem sido amplamente divulgado, a Lei Federal nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, instituiu a responsabilidade de empresas pela prática de atos de corrupção de agentes públicos.
por Vicente Greco Filho¹ e João Daniel Rassi²
Trata-se, sem dúvida, de mais um instrumento no combate à corrupção em órgãos públicos, tendo-se adotado a solução inteligente de punir no âmbito civil e administrativo, diferentemente de outros países que adotaram a responsabilidade da pessoa jurídica no plano penal, algo muito polêmico e, em nosso entender, inadequado.
Contudo, como todos os grandes remédios, a Lei precisa ser aplicada com inúmeros cuidados, como, aliás, já alertado por JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, recentemente, em entrevista concedida, em rede nacional.
Em 29 de janeiro de 2014 foi editado o Decreto nº 60.106 disciplinando a aplicação da lei ao Estado de São Paulo, no qual se verifica evidente inconstitucionalidade decorrente de errada compreensão da lei federal ao atribuir competência para aplicação de sanções a empresas públicas e sociedades de economia mista, as quais, na verdade, são entidades de Direito Privado.
O artigo 8º da Lei Federal dá a entender que a autoridade máxima de qualquer entidade dos poderes executivo, legislativo e judiciário, pelo seu dirigente máximo, poderia instaurar o processo administrativo e aplicar as sanções.
Não se pode esquecer, porém, que o poder executivo tem entidades da administração indireta de Direito Privado e que não podem aplicar sanções a quem quer que seja. A aplicação de medidas punitivas aos particulares, pessoa jurídica ou natural, é privativa de entidades de Direito Público, porque o poder sancionatório é decorrência da chamada potestade administrativa, que somente pessoas jurídicas de Direito Público detêm.
Disso decorre que empresas públicas e sociedades de economia mista, apesar de serem entidades do poder executivo, não a exercem nem podem exercê-la e, consequentemente, não podem instaurar processos administrativos punitivos e muito menos aplicar sanções, como ocorre com o exercício do chamado poder de polícia. Se o fizerem, sua atuação será inconstitucional, por violação do princípio do direito à liberdade de agir e da integridade da pessoa, que somente pode ser restringida pela lei e, no caso de sanção, somente poderá ser aplicada por entidade de Direito Público.
Trata-se de princípio implícito e que encontra resguardo no § 2º do art. 5º da Constituição. Aliás, as pessoas jurídicas de Direito Privado, ainda que pertencentes à administração indireta, estão sujeitas à lei comentada, se um de seus agentes praticar atos lesivos em face de pessoa de direito público, estando sujeitas às penas da lei. Imagine-se a hipótese, não impossível ou cerebrina, de uma empresa controlada pelo Estado vier, por meio de um de seus agentes, a corromper um agente federal para obter, por exemplo, uma licença ambiental federal.
Poderá ela ser punida, certamente; ora, sendo assim, como poderia ter o poder de aplicar sanções a empresas concorrentes? Isso sem falar que o dirigente máximo da empresa também pode estar direta ou indiretamente envolvido na corrupção de algum de seus membros ou, por esprit des corps, tenha a tendência de protegê-los.
Completa o embasamento constitucional desse entendimento o art. 173 da Constituição, que coloca a empresa pública e a sociedade de economia mista no plano da atividade econômica e no nível do setor privado, excluindo-lhe, portanto, o poder de aplicar sanções aos administrados, pessoas naturais ou jurídicas. O poder sancionatório é do Estado, enquanto tal e atua por intermédio das pessoas jurídicas de Direito Público.
A Lei Federal não é inconstitucional. Sua aplicação ou interpretação é que pode sê-lo, como está acontecendo com o Decreto Estadual paulista.
Antes que o Judiciário a declare, espera-se que a inconstitucionalidade seja corrigida mediante a alteração do Decreto para atribuir a competência de aplicar sanções exclusivamente a um órgão público da Administração Direta, isento e que também possa ter a transparência de poder ser fiscalizado pelos cidadãos. Igualmente, considerando que cada estado da federação ou município terá seu próprio regulamento, espera-se que evitem repetir esta inconstitucionalidade.
¹VICENTE GRECO FILHO
Jurista, advogado, sócio-coordenador da Greco Filho Soc. de Advogados, procurador de Justiça do Estado de SP (aposentado), professor sênior Livre Docente na USP e escritor de livros jurídicos
²João Daniel Rassi
Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutorando em Processo Penal na USP