É indispensável uma advertência preliminar. Este ensaio não tem nenhum conteúdo valorativo, de certo ou errado, de bom ou mau, justo ou injusto ou de aprovação ou reprovação. Trata-se de uma constatação do que ocorre na prática forense em face de uma realidade social e jurídica atual, de âmbito mundial, de modo que fica desde logo repelida qualquer interpretação no sentido que possa haver uma posição de que é favorável ou desfavorável a qualquer situação simplesmente descrita ou que haja termos pejorativos ou elogiosos.
Há três fenômenos a definir: o que se entende por vitimização para os fins deste estudo, as presunções em direito processual penal e como está disciplinado o ônus da prova no mesmo subsistema processual brasileiro. A conclusão será o que na prática está ocorrendo em virtude do seu relacionamento.
A vitimização que nos interessa é a que se forma em virtude do reconhecimento da fragilidade ou vulnerabilidade de grupos em determinada situação social ou natural, como a qualidade ser mulher, criança, idoso, afrodescendente, LGBTQIAPN+, etc. Não será considerada a vitimização individual, como atitude psicológica subjetiva.
A situação de vitimização decorre de fatores pessoais, sociais e naturais, que integram a pessoa em uma categoria ou grupo merecedor de proteção especial, que se manifesta juridicamente por meio de normatização protetiva, como a agravante penal do art. 61, II, “h” do Código Penal (quando o crime é praticado contra criança, maior de 60 anos, enfermo ou mulher grávida), a qualificadora de feminicídio, as normas antirracismo, a Lei contra a violência doméstica etc.
Além do tratamento juridicamente especial, as pessoas do grupo vitimizado recebem ações afirmativas com o objetivo de compensar a reconhecida fragilidade, citando-se como exemplo as cotas sociais no ingresso aos cursos superiores.
As presunções são regras, legais ou decorrentes da experiência, por meio das quais, provado um fato, resulta a convicção da existência de outro. No primeiro caso, a convicção da existência resulta de imposição legal. No segundo, da aplicação de uma regra que o juiz extraiu da observação do que ordinariamente acontece no comportamento humano.
Três são os geradores de presunções: a lei (presunção legal), a experiência técnica (presunção científica) e a experiência comum (presunção humana). Nestas encontra- se a presunção de vulnerabilidade decorrente de alguém pertencer a um ou mais grupos vitimizados.
Apesar da opinião de que não há presunções na aplicação do Direito Penal, não se vê dúvida de que existem. No plano legal, por exemplo, no estupro de vulnerável, ainda que seja um tipo autônomo, a idade, que é elemento do tipo, encerra uma presunção porque dispensa a prova de dissenso da vítima que seria exigida no estupro de maior de 14 anos.
No plano científico, ainda exemplificativamente, o encontro do DNA de alguém no local do crime induz a presunção de que esse alguém lá esteve. No plano da presunção humana, no ambiente doméstico, a presunção é a de que o agressor é o homem e vítima é a mulher.
Sem dúvida pode-se dizer: nem sempre. Sim, mas a presunção inverteu, ilegalmente, o ônus da prova. Como discorremos em nosso Manual de Processo Penal (Ed. Ti-rant Lo Blanch, 2019), à acusação cabe a prova do fato constitutivo de sua pretensão ou de seu direito, que são as elementares do tipo e a autoria; ao réu incumbe, em princípio, a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo da pretensão acusatória, ou seja, o fato que, a despeito da existência do fato constitutivo, tem, no plano do direito material, o poder de imputação.
Ou seja, apesar da justa proteção do ofendido que se encontra inserido dentro de um grupo vitimizado, há de se ter cautela na adoção das presunções a fim de não contrapor o direito constitucional da ampla defesa e do contraditório, os quais integram o princípio do devido processo legal, fundamental à garantia da ordem e justiça em qualquer sociedade democrática.